Em 31 de outubro, completará 20 anos do assassinato do casal Marísia e Manfred Von Richthofen. O caso é ainda hoje um dos mais chocantes do país. Por um lado, porque a mandante do crime foi a própria filha do casal, Suzane Von Richthofen, e por outro, pela crueldade com que aconteceu, com as vítimas tendo sido mortas a pauladas enquanto dormiam.
O crime começou a ser desvendado quando Cristian Cravinhos, cunhado e cúmplice de Suzane, confessou a José Masi, delegado da Polícia Civil de São Paulo na época, que ele teve participação no assassinato do casal Richthofen. Com isso, as autoridades chegaram ao irmão de Cristian, Daniel, e a sua cunhada, Suzane, filha das vítimas, que também estavam envolvidos no crime.
Atualmente aposentado, Masi diz que se recorda muito bem da repercussão do crime na época, que fez com que o país olhasse com atenção a cada desdobramento do episódio. Masi, que foi um dos primeiros a colher os depoimentos de Suzane e do seu namorado Daniel, também se recorda que o comportamento do casal na delegacia chamou sua atenção.
— Desde que eles chegaram ao DHPP (Departamento de Homicídios e de Proteção à Pessoa), o comportamento deles não me convenceu. A Suzane e o Daniel trocavam beijinhos ao se cruzarem no corredor, um chamava o outro de “benzinho”, um comportamento que não era esperado de quem tinha acabado de perder pai e mãe — relembrou Masi.
Ele também conta que a frieza de Suzane o chocou e que, por conta disso, desde o início, suspeitava do seu envolvimento no crime.
— No caso da Suzane, não havia nenhum sinal de desespero, de preocupação com o futuro de órfã, nada. Quando sentou no sofá ao lado do Daniel, ela jogou sua perna sobre a perna dele, um gesto revelador de cumplicidade — relatou o ex-funcionário do DHPP.
Masi, que também trabalhou na investigação do assassinato de Celso Daniel, o então prefeito de Santo André, morto em janeiro de 2002 , acredita que o caso Suzane foi marcante para a polícia e a Justiça paulistas e destaca o excelente trabalho feito pelos seus colegas.
— Não ficou dúvida nenhuma sobre esse caso e eles receberam condenação exemplar. Lembro que no início o Cristian tentou segurar o B.O. (acusação) sozinho, mas logo a participação do irmão dele e da Suzane ficaram evidentes — contou.
Primeiras pistas
Para tentar encontrar pistas, quatro dias depois da morte do casal, Masi foi até a mansão inspecionar o lixo. Lá, encontrou caixas vazias que antes abrigavam as joias da família.
Apesar das caixas vazias, o então delegado desconfiou que não se tratava de um caso de roubo, uma vez que a casa estava arrumada demais. Outro fato também chamou a atenção de Masi: o casal foi encontrado com sacos de lixo cobrindo seus rostos, o que indicava que a ação não havia sido feita por ladrões, mas por, possivelmente, alguém que conhecia as vítimas muito bem.
Nesse mesmo dia, um pedido da filha do casal, que estava no local, gerou estranheza:
— A Suzane se aproximou e pediu para ficar com a caixa de joias como uma recordação. Nesse momento, tive a clara percepção de que ela sabia onde estavam as joias “roubadas” — afirmou.
As circunstâncias levaram o ex-funcionário da DHPP a ficar convicto de que a cena do crime tinha sido alterada para simular um roubo.
Depois que Suzane, seu namorado Daniel e seu cunhado Cristian confessaram os crimes, parte das joias foi recuperada em uma chácara da família Richthofen, na região de Sorocaba, em São Paulo.
A investigação
O delegado Ricardo Guanaes, que ainda atua na Polícia Civil de São Paulo, era titular da equipe H-Sul do Departamento de Homicídios e, assim como José Masi, esteve na casa logo após o crime.
— Era um crime que poderia ter sido rachado (solucionado) no dia, mas a gente encontrou uma certa dificuldade porque era um caso que exigia muita cautela. Quando chegamos à casa, vimos o local e conversamos com um tio dela, e ele achou esquisito o irmão não ter deixado ligado o alarme — relatou.
Guanaes lembra que na ocasião o tio de Suzane lhe contou que as discussões entre ela e os pais eram frequentes e motivadas pela não aprovação do relacionamento da filha com Daniel. No entanto, o homem teria garantido que essa questão havia sido resolvida e superada pela família.
Além da operação realizada na mansão das vítimas, o delegado foi com sua equipe para a casa de Daniel e, nesse dia, o que chamou sua atenção foi a aliança de noivado no dedo de Suzane, que até então não usava a joia.
— Se o problema do namoro estava superado, por que a aliança do noivado logo depois da morte dos pais? Naquela ocasião, tomamos uma atitude que não era comum: levamos todos para o departamento, a Suzane, o Daniel, o Andreas (irmão de Suzane) e o pai dos irmãos Cravinhos. A gente não podia errar. Imagine se a gente faz uma acusação que depois não se confirma? — explicou.
Guanaes explicou que, no prédio da Homicídios, o método foi levar cada um para uma sala e, com cautela, ir fechando o cerco. Com isso, as autoridades conseguiram descobrir inconsistências nos depoimentos.
— A gente percebia que eles estavam com uma história bem ensaiada, uma versão que, no começo, parecia muito boa, mas depois foram aparecendo os buracos. Aquela aliança no dedo foi algo muito revelador. Ficou claro para mim que a Suzane e o namorado estavam escondendo muita coisa, o que depois se confirmou.
O delegado Guanaes já atuou em vários casos difíceis, como o esclarecimento do assassinato do juiz de Presidente Prudente, Antônio Machado Dias, executado em 2003 a mando do Primeiro Comando da Capital (PCC). Apesar da vasta experiência, de acordo com ele, o assassinato dos Richthofen foi o que mais marcou sua carreira.
— É um caso que até hoje, além de nos chocar muito, tem essa característica da relação pais e filhos. Os pais tinham viajado para a Europa e eles ficaram na mansão, aproveitando e curtindo muito, numa vida de sonho. Quando os pais voltaram, as regras da casa foram restabelecidas e eles se viram privados de uma liberdade a que achavam que tinham direito. É um dos casos da vida. Tenho filho e um crime assim é algo que choca e marca muito.
O papel do Ministério Público
A denúncia do Ministério Público de São Paulo apresentada ao 1º Tribunal do Júri da capital paulista descreveu de forma detalhada os acontecimentos daquele 31 de outubro de 2002.
“Por volta da meia-noite, no interior da residência situada à Rua Zacarias de Góis, no bairro Campo Belo, em São Paulo, Daniel Cravinhos de Paula e Silva e seu irmão, Cristian Cravinhos de Paula e Silva, desferiram diversos golpes de porretes que causaram em Manfred Albert Von Richthofen e em sua esposa, Marísia Von Richthofen, ferimentos suficientes a lhes causarem a morte”, diz documento do MP.
Em outro trecho, o MP destaca o envolvimento entre os autores do crime entre si e com as vítimas. “Segundo se apurou, para conseguirem êxito em sua empreitada criminosa, contaram os acusados com a participação valiosa e decisiva da filha do casal, Suzane Louise Von Richthofen. Daniel e Suzane eram, à época dos fatos, namorados e seu relacionamento recebia uma franca hostilidade das vítimas, que não aceitavam o romance deles”.
O documento segue com as motivações do crime e como o assassinato foi executado: “As tensões geradas pelo conflito em torno do namoro da filha culminaram com o uso de força física por Manfred e com promessas de deserdação dela, caso não desse fim ao namoro. Com isso, o casal passou a nutrir a intenção de eliminar os pais dela. O passo seguinte foi o planejamento do crime. Com a habilidade adquirida na confecção de aeromodelos, Daniel fabricou os porretes que seriam usados para matar o casal e Suzane apanhou as luvas cirúrgicas da mãe que seriam usadas para não deixar marcas da ação. Cristian foi chamado para ajudar em troca do dinheiro que havia na mansão”.
Ainda segundo o MP, no dia dia do crime, os três entraram na casa próximo da meia-noite, quando Suzane já sabia que os pais estariam dormindo. Ela teria entrado primeiro para se certificar que eles não estavam acordados e chamou Daniel e Cristian, que esperavam do lado de fora. Com os rostos cobertos por meias-calças e usando luvas, os irmãos Cravinhos se acercaram da cama e desferiram os golpes de porrete contra as cabeças das vítimas.
A investigação determinou que Daniel atacou Manfred e Cristian matou Marísia. Conforme o laudo da perícia, as porretadas foram tão violentas que pedaços de ossos e massa encefálica se espalharam pelo quarto. Em seguida, para se certificar da morte de ambos, Cristian enfiou uma toalha na cabeça de Marísia e a envolveu com um saco plástico. Daniel, por sua vez, usou uma toalha molhada para cobrir a cabeça e impedir a respiração de Manfred. Depois foi em busca de um revólver que sabia existir na casa e deixou ao lado do corpo do homem.
Com relação à Suzane, o Ministério Público afirma que enquanto a dupla matava o casal, ela ficou encarregada de criar um cenário de roubo, espalhando as joias da mãe pela casa. Algumas foram levadas por Cristian, além de R$ 10 mil, que foram encontrados posteriormente. “Ela sabia onde a mãe guardava valores em moeda estrangeira, deu uma parte para Cristian e ficou com um pouco para suas despesas. Depois de trocarem de roupa e se desfazerem dos trajes ensanguentados e dos porretes, o trio deixou a casa de carro. Cristian foi deixado próximo à sua casa, Daniel e Suzane foram para um motel. Uma hora depois, Suzane saiu e passou em um cibercafé para pegar o irmão mais novo, ali propositadamente deixado para que não atrapalhasse eventualmente os planos do trio”, diz outro trecho da denúncia.
Para não suspeitarem do seu envolvimento, Suzane retornou à casa e continuou simulando a história do assalto. Com isso, ela fez uma ligação para o namorado e em seguida para a polícia. A Justiça concluiu que Suzane e Daniel agiram embalados por motivação torpe. Ela, para se vingar dos pais ante a proibição do namoro. Ele, com a perspectiva de uma vida confortável com a herança que receberia. Cristian, por sua vez, agiu motivado pelo pagamento em dinheiro.
O julgamento
Alberto Zacharias Toron, que atuou como assistente de acusação, auxiliou a promotoria a provar a culpa dos réus.
— Dificilmente a Justiça e a sociedade irão deparar com um caso tão claro em que a responsabilidade penal dos acusados ficou cabalmente demonstrada. A polícia fez um trabalho de investigação exemplar, o que levou os réus a confessarem na polícia e em juízo — disse Alberto.
Toron lembra também que os próprios acusados não tiveram argumentos para justificar a atrocidade que cometeram, o que facilitou o andamento do processo
— É verdade que eles procuraram mitigar os fatos, dizendo que a Suzane teria sofrido violência por parte do pai, mas isso nunca se provou e, na verdade, era uma escusa para tentar justificar a barbaridade. Tanto que o irmão mais velho do Daniel comprou uma moto Ninja com o dinheiro que ele furtou da casa. Viu-se mesmo que a ideia deles era matar as vítimas para usufruir as benesses de uma casa confortável que o pai dela construiu com longos anos de trabalho — explicou o assistente de acusação.
Fonte: Estadão Conteúdo