FÃ CULT: duas séries, muitas mulheres e lições essenciais

O gosto por me enxergar nas coisas que acontecem na tela.

Por Alessandro Bracht

Minha relação com as artes audiovisuais – e aqui me remeto ao cinema e às séries que ocupam em profusão os serviços de streaming – tem como peculiaridade o gosto por me enxergar nas coisas que acontecem na tela. Sagas na linhagem ‘Star Wars’ e ‘Vingadores’ passam longe do meu desprezo, mas jamais irão figurar na lista de prediletos (sobre os heróis da DC não é possível simplificar tanto a relação). Dito isso, falarei sobre duas obras que têm as mulheres no comando, o que poderia resultar numa dúvida elementar, ou seja, como um homem se vê representado em produtos de tal característica. A resposta não é complexa e virá logo a seguir.

‘Big Little Lies’ (duas temporadas, lançadas em 2017 e 2019) conta com elenco feminino pesado – Reese Whiterspoon, Nicole Kidman, Laura Dern e, somente na segunda temporada, Meryl Streep, destruindo como sempre – para narrar existências problemáticas na idílica cidade californiana de Monterrey. Num universo em que a imagem pública e a sensação de importância individual comandam as ações mais cotidianas, as agruras reais como violência doméstica, infidelidade e estupro só emergem quando um evento dramático tem lugar em meio a uma das tantas celebrações do jeito de ser americano – este também hipócrita em grau elevado. Impossível não se enxergar nos dramas vividos pelas mulheres e na necessidade imposta por um meio social sufocante, carregado de masculinidade tóxica ao qual elas se submetem para manter uma falsa harmonia sócio-familiar. Impossível, também, para quem é homem, não se ver em algum dos personagens masculinos da série, ainda que eu deseje que ninguém por aqui se reconheça em Perry Wright (Alexander Skarsgaard), o esposo violento de Celeste Wright (Nicole Kidman). Caso acontecer, recomendo tratamento psiquiátrico urgente e distância de qualquer envolvimento afetivo supostamente amoroso.

Já ‘I May Destroy You’ (2020), minissérie em 12 episódios que acaba de arrebatar o troféu de melhor roteiro no Emmy, é escrita, dirigida e protagonizada por Michaela Coel. Mulher, negra e linda (não apenas fisicamente, vale dizer) já havia brilhado em outra minissérie, ‘Black Earth Rising’ (2018), essa sobre os efeitos do genocídio em Ruanda (1994). Em ‘I May Destroy You’, Coel interpreta a escritora de sucesso repentino Arabella, pessoa com certa dificuldade em lidar com os ganhos materiais da fama e constantemente cobrada por sua editora para lançar um novo livro. Em meio a esse turbilhão, que envolve consumo irresponsável de álcool e substâncias ilegais, Arabella se descobre vítima de estupro e estabelece como meta imediata localizar o agressor a fim de encontrar a paz interior que ela julga necessária para continuar com seu trabalho. Os rumos tomados pela série desviam de qualquer obviedade e, a exemplo de ‘Big Little Lies’, não seguem o caminho fácil da luta mítica do bem contra o mal. Claro que existem aqueles a quem devemos desejar punição pelo crime cometido e, caso algum espectador caia na malha grossa do “foi estuprada porque pediu”, repito a recomendação que finaliza o parágrafo anterior. A propósito, sobre a questão do se enxergar: como um homem branco hétero se identifica numa história marcada por apontamentos precisos a respeito da condição da mulher negra – além da presença marcante de personagens de sexualidade múltipla? Infelizmente, apesar dos muitos aprendizados recentes, o espelho contido em ‘I May Destroy You’ refletiu um alguém que demorou demais para entender a dimensão dos racismos e dos machismos, apesar de ciente da existência. Superar as estruturas nas quais se é educado exige esforço e encontros frequentes com o desconfortável da vida. Mas é um bem necessário e, óbvio, recomendo a todos.

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